sábado, 10 de agosto de 2013

O macaco despido

Quando o macaco decidiu evoluir, emprestou-se sapatos e roupas. Achava que assim mais se aproximaria da aparência eterna dos deuses aos quais, conforme o Verbo, apregoavam-lhe assemelhar. Em sua incipiência, não podia saber que a vida é volutiva: um dia, desgasto o corpo e despida as vestes, o macaco torna ao bicho que sempre foi. De nada servem suas ciências, suas virtuais qualidades. É nu e viscerado que abandona todo falso pudor e toda hipocrisia. Retorna à espécie. E, ao retornar, morre.

Desmoral: Só vislumbramos o que realmente somos duas vezes: quando nascemos e quando morremos. Em ambas as oportunidades, não o sabemos.

quarta-feira, 20 de março de 2013

HEXAGRAMA V - A ESPERA




Não antes de a chuva cair, ela dizia.
Sabia da nossa impaciência, mas queria nos ensinar.
A cebola devia ter um tamanho imenso, porque ouvimos o trucidar preciso durante todo o noticiário do meio-dia.
Quando o noticiário acabou, dando a previsão do tempo, gritamos todos: Não vai chover!
E ela respondeu, por trás da nuvem de ervas aromáticas, vai sim.
A meteorologia, no entanto, assinalava o mapa com ícones de tempo bom.

Jamais, é claro, com o tom azul-esbranquiçado do céu devido à umidade diluída.
Um sol brilhante e eletrônico na TV, e ela, lá na cozinha, afirmando seu conhecimento sobre os conluios do tempo.
Dizendo não há nisso nenhuma lógica!
E sem olhar pela janela. Se olhasse, veria os passarinhos agitados imitando folhas caindo.
Na televisão insistimos.
Mas a cebola se intrometeu, chiando para que nos calássemos.

Ela castigou a cebola tapando a panela e avisou vou preparar os tomates, sabendo que sempre pedíamos para ver.
Espetou sem dó a primeira casca frágil.
Tocava-os um a um no fogo redondo e azul, até que enferidassem.
Depois jogava-os numa bacia e prosseguia a tortura, esmagando-os, até que houvesse sangue em suas mãos.
Está escurecendo, viram?
Pela basculante aberta, entrava de fato um ar ventoso e fresco.

Os vapores das panelas adensavam em branco.
Um cheiro insuportável de bom se espalhando, multidões de arroz e feijão cozidas e os bifes encolhendo sob o calor da chapa.
Está quase, disse ela, sorrindo.
Encurralava-os, armada de uma faca, uma escumadeira e uma gangue de colheres.
Sob o estalo luminoso do primeiro relâmpago, nos fez sentar à mesa.
Sob o roncar do trovão, empunhamos nossos talheres.

As travessas sendo trazidas uma a uma e os copos trepidando a cada trombada de nuvens.
Tudo e todos à postos, lembro de sua silhueta à janela, amarrada em um avental, emoldurada pelo vento decorado com pó e folhas.
Seu sorriso de bruxa.
Nosso espanto de joão-e-maria.
Finalmente descarregou-se a chuva.

Pontuávamos com o burilar dos talheres a música minimalista da aguaria. 
E ela tagarelava novidades, entremeando:
Não botei muito sal.
Ficou bem passado?
Só mais um pouquinho...
Ai das sobras no prato.